Canto IX, A Ilha dos Amores
Analisando “Os Lusíadas”, de Luís de Camões
A obra Os Lusíadas, escrita por Luís Vaz de Camões, é considerada a maior epopeia da língua portuguesa. Publicada pela primeira vez no ano de 1572, marcado pelo período literário do Classicismo, esta obra narra a viagem liderada por Vasco da Gama, em 1498, “por mares nunca d’antes navegados”. Viagem esta que, dobrado o Cabo da Boa Esperança, conduziu os navegantes lusitanos à passagem para as Índias Ocidentais.
O livro, substancialmente, marca o itinerário de uma viagem coberta de arriscadas peripécias e grandes feitos — através de portos e cidades diferentes, povos variados, ilhas estrangeiras e nações inimigas. Os Lusíadas se vale de narração épica para legitimar o caráter lusitano, posto em cheque por ameaças colossais e enormes perigos, de povo eleito. Em outras palavras, através do gênio poético de Camões, Os Lusíadas conflui a história de Portugal: o povo português afirma sua coragem ao se aventurar por desconhecidos e perigosos mares, atribuindo a si valor histórico e de intelecto; desta maneira, o país agrega a necessidade de um reconhecimento mundial de seu cognitivo poder.
Se Vasco da Gama e os seus valorosos companheiros possuem o mérito de abrir um novo caminho para a humanidade, também o possui Camões, pela sua escrita. Desta forma, não se pode recusar o título de herói, concedido aos primeiros, assim como ao poeta. Além destes, não se pode deslegitimar o caráter heróico do leitor. Em Os Lusíadas, fala-se, portanto, de três diferentes heroicidades:
(1) heroicidade das ações;
(2) heroicidade da escrita;
(3) heroicidade da leitura.
Em suma, pode-se afirmar que o poeta pede, ao longo de sua epopeia, o prêmio do reconhecimento e da fama imortal, tanto para os (1) navegantes, quanto para (2) si. Movido por um sentimento didático-moral, típico do classicismo camoniano, o poema é encerrado com a proposta de um modelo de homem exemplar. Este se realiza através dos ideais renascentistas de perfectibilidade e melhoria humanas. Isto é, (3) se o leitor efetuar uma leitura heróica, poderá ascender a este modelo.
Canto IX
A viagem de Vasco da Gama é um momento de fundamental importância para sua época, uma vez que está relacionada com os descobrimentos geográficos e a exploração de novas terras. A partir do século XIV, Portugal inicia uma jornada marítima por diversas razões: primeiramente, por conta da sua localização geográfica, o país ficava territorialmente isolado pela Península Ibérica; depois, havia uma demanda por novos mercados de desenvolvimento — tanto por conta da ameaça política, comercial e territorial do imenso Império Otomano, quanto pela ambição de chegar às Índias, uma região com um mercado de consumo crucial para a Europa.
Convém recordar, aliás, que, por conta de tal desbravamento oceânico, os lusitanos não só conseguiram acumular um conhecimento náutico excepcional, como se tornaram pioneiros em uma nova forma de interação comercial, gerando uma transição dos Reinos Terrestres para Reinos Marítimos.
Pois então, a viagem de Os Lusíadas é, para além de itinerário geográfico, um itinerário cognoscitivo: no Canto IX, denominado “A Ilha dos Amores”, Vênus, entre outras ocorrências, entregará a Gama e a seus esforçados navegantes um novo modelo de humanidade, no qual este homem será o exemplo à ser seguido em futuras gerações:
«Quero que haja no reino Neptunino,
Onde eu nasci, progénie forte e bela;
E tome exemplo o mundo vil, malino,
Que contra tua potência se rebela,
Por que entendam que muro Adamantino
Nem triste hipocrisia val contra ela;
Mal haverá na terra quem se guarde
Se teu fogo imortal nas águas arde.»
Este homem, que a vontade pedagógica de Camões entrega, é o herói:
O herói aparece vestido do próprio esforço, da justa virtude e do claro entendimento promovido pela longa experiência. (…) Mediante a virtude, Camões situa os seus heróis sob o império superior de uma lei, pois submete a grandeza dos seus esforços à fiel observância de uma lei divina, e de outra humana. (…) Mediante o entendimento, o herói poderá discernir o reto caminho que vai levar a sua viagem a bom porto, juntamente à qual sintetiza um ideal cognoscitivo próprio do humanismo: o engenho. (…) O conceito de entendimento camoniano pertence plenamente ao Renascimento, pois situa a experiência na base do mesmo entendimento. Além disso, servindo-se dele, Camões critica a sociedade de seu tempo: através do contraste que se gera entre essa sociedade e o modelo exemplar (pedagógico) de herói, este último verá evidenciadas todas as suas grandezas e magnificências. — Trecho retirado de “A mitologia n`Os Lusíadas”, por Bianca Morganti.
A partir deste momento, entraremos mais a fundo no Canto IX (estrofes 16 a 95). Ocupando 20% da totalidade de Os Lusíadas (contendo 79 estrofes), este canto envolve tanto um microepisódio (estrofes 54 a 83), quanto uma crítica à sociedade da época (estrofes 89 a 95).
Em relação ao seu conteúdo literário, observa-se que o Canto IX se inicia com a viagem de regresso dos navegantes portugueses. Através do esforço, da virtude e do entendimento, conseguiram atingir seu principal objetivo (abrir caminho por mar até às Índias Ocidentais). Sabem, porém, que este objetivo não é coroado sem a volta à Pátria, sem a concessão do fruto de seu suor ao seu rei e ao seu povo. Aliás, o fim da ação dos heróis camonianos transcende as suas próprias individualidades: é a doação de si, a entrega total de seus esforços e dos resultados de seus feitos. O herói não recolhe o prêmio para si próprio, mas para uma vontade abrangentemente superior. Há o propósito do engrandecimento da Pátria. Este é um claro sinal da magnitude do herói camoniano:
Apartadas assi da ardente costa
As venturosas naus, levando a proa
Pera onde a Natureza tinha posta
A meta Austrina da Esperança Boa,
Levando alegres novas e reposta
Da parte Oriental pera Lisboa,
Outra vez cometendo os duros medos
Do mar incerto, tímidos e ledos.
O prazer de chegar à pátria cara,
A seus penates caros e parentes,
Pera contar a peregrina e rara
Navegação, os vários céus e gentes;
Vir a lograr o prémio que ganhara,
Por tão longos trabalhos e acidentes:
Cada um tem por gosto tão perfeito,
Que o coração para ele é vaso estreito.
Pois então, a viagem do herói sempre exige, neste contexto, a vontade do retorno. Esta concede às navegações seus verdadeiros sentidos, em primeira instância. Todavia, este retorno não significa o “fechamento do ciclo da ida e da volta”. Aliás, muito ao contrário, o abre: o retorno dos heróis, e a entrega das suas conquistas, direcionam a história de Portugal a uma clara projeção até o futuro — não apenas marcando a tarefa que há de ser feita, como também ressignificando o passado e o futuro da Pátria. Da mesma maneira, o texto se configura como uma opera aperta, pois não acaba no último verso do Canto X, mas a vontade pedagógica que Camões encerrou nele configura sempre um novo início, a necessidade de não abandonar o modelo heróico que se propõe para o melhoramento pessoal e social.
Destarte, há um prêmio, uma recompensa para os seus esforço e valor, para as suas inteligência e virtude. Tendo os navegantes lusitanos iniciado a viagem de volta, Vênus, a sua Deusa protetora e benfeitora, decide compensá-los:
Pera primo de quanto mal passaram,
Buscar-lhe algum deleite, algum descanso,
No Reino de cristal, líquido e manso
O prêmio, a dádiva que a deusa concede, é a, assim chamada, Ilha dos Amores. Vênus vai ter com o seu filho, Cupido, à procura de ajuda. Pede-lhe que fera de amor as filhas de Nereu e que incendeie o coração destas pelos valorosos portugueses:
Ela, por que não gaste o tempo em vão,
Nos braços tendo o filho, confiada
Lhe diz: — «Amado filho, em cuja mão
Toda minha potência está fundada;
Filho, em quem minhas forças sempre estão,
Tu, que as armas Tifeias tens em nada,
A socorrer-me a tua potestade
Me traz especial necessidade.
(…)
«E pera isso queria que, feridas
As filhas de Nereu no ponto fundo,
D’ amor dos Lusitanos incendidas
Que vêm de descobrir o novo mundo,
Todas nũa ilha juntas e subidas,
(Ilha que nas entranhas do profundo
Oceano terei aparelhada,
De dões de Flora e Zéfiro adornada);
Cupido estava no meio de uma missão de interesse próprio, mas a deixa pelos interesses da mãe — posteriormente, os males da humanidade, criticados por Cupido, retornam no final Canto IX. Depois, Vênus conduz as ninfas enamoradas a uma ilha que vai surgir por encanto no horizonte dos côncavos navios de Gama. A descrição da Ilha ocupa quase 10 estrofes (54 a 63), e diz respeito aos seguintes tópicos:
- aspecto geral: outeiros, vales, um lago e riachos;
- árvores agrestes e árvores frutíferas com seus pomos: laranjeiras, cidreiras, limoeiros, álamos, mirtos, pinheiros, ciprestes, cerejeiras, amoreiras, pés de romãs, videiras e pereiras;
- gramado que imita tapete persa;
- flores: narcisos, violetas, lírios, cecéns, jacintos e boninas;
- pássaros e animais: cisnes, rouxinóis, lebres, gazelas e passarinhos.
Microepisódio
Inaugurando o que é chamado de microepisódio, estas estrofes estão cheias de exuberante sensualidade e relembram os jardins edênicos e paradisíacos. Trata-se de um vergel sensual, onde Vênus deposita a sensualidade erótica das ninfas. Estas, que aparecem já nuas, banhando-se nas águas cristalinas e correndo com os cabelos ao vento, posteriormente vão se oferecer à vista dos navegantes. As ninfas, aconselhadas por Vênus, põem em prática uma autêntica técnica de sedução: mostrar ocultando, e entregar fugindo. Deveriam, inicialmente, formar um verdadeiro cenário de caça: simular indiferença e repulsa aos navegantes, pois antes de serem possuídas, deveriam ser desejadas. Assim, aumentam a força de seus amores.
Este jogo amoroso, cheio de sensualidade e erotismo, é coroado com a apaixonada perseguição de Leonardo a Efire (estrofes 75 a 82). Na estrofe 82, temos o desenrolar da ardente caça:
Já não fugia a bela Ninfa tanto,
Por se dar cara ao triste que a seguia,
Como por ir ouvindo o doce canto,
As namoradas mágoas que dizia.
Volvendo o rosto, já sereno e santo,
Toda banhada em riso e alegria,
Cair se deixa aos pés do vencedor,
Que todo se desfaz em puro amor.
Já em relação ao capitão dos navegantes, Gama, e a principal das Ninfas, Tétis, está o conduz aos seus aposentos, e ali lhe entrega as delícias do seu amor:
Tomando-o pela mão, o leva e guia
Pera o cume dum monte alto e divino,
No qual ũa rica fábrica se erguia,
De cristal toda e de ouro puro e fino.
A maior parte aqui passam do dia,
Em doces jogos e em prazer contino.
Ela nos paços logra seus amores,
As outras pelas sombras, entre as flores.
Seduzidos pelas ninfas, abandonados os navegantes à sensualidade do amor, surge da Ilha um único rumor:
Oh, que famintos beijos na floresta,
E que mimoso choro que soava!
Que afagos tão suaves! Que ira honesta,
Que em risinhos alegres se tornava!
O que mais passam na manhã e na sesta,
Que Vénus com prazeres inflamava,
Milhor é exprimentá-lo que julgá-lo;
Mas julgue-o quem não pode exprimentá-lo.
Neste momento, o poema entrega ao leitor a explicação do simbolismo da Ilha dos Amores (estrofes 89 a 95):
Que as Ninfas do Oceano, tão fermosas,
Tétis e a Ilha angélica pintada,
Outra cousa não é que as deleitosas
Honras que a vida fazem sublimada.
Considerações Finais
A Ilha dos Amores torna-se o emblema da Fama, a recompensa que os heróis recebem pelo seu esforço, pela sua virtude, pelo seu valor e pelo seu engenho. O herói não poderá ser entregue ao esquecimento, pois Vênus o recompensa com a Fama, que o fará perdurar na memória futura. Para que essa fama seja verdadeiramente imortal, para que estas glórias do herói possam continuar sendo louvadas eternamente (neste mundo), há a necessidade, além dos grandes acontecimentos, do poeta. O seu canto, a sua escrita, sustentam e concedem firmeza à fama dos heróis.
Portanto, o herói precisa do poeta. É este que, mediante seu canto, fixará a fama do herói, o qual verá, na escrita, perdurar a glória dos colossais feitos. Não obstante, a generosidade do poeta não é gratuita: ele procurará, também, o reconhecimento e a fama próprios. Sendo assim, a heroicidade das ações imortaliza-se na escrita do poeta; e, através da heroicidade da escrita, o poeta busca sua própria fama imortal. Há a necessidade do gênio criador: “Numa mão a pena e noutra a lança”. Ou seja, o canto do poeta procurará também a sua própria imortalidade, o seu valor poético — para além dos feitos cantados, afirma-se imortal quem os canta:
Vereis amor da pátria, não movido
De prêmio vil, mas alto e quase eterno;
Que não é prêmio vil ser conhecido
Por um pregão do ninho meu paterno.
Por consequência, o final do Canto IX é uma autêntica incitação à heroicidade da leitura, à imitação dos valores heróicos por aqueles que lêem os Cantos do poeta. O leitor, apesar de anônimo (por não alcançar a fama dos heróis anteriormente citados), recebe uma recompensa lúdica. Isto é, ele alcança o conhecimento de como conseguir essa fama, como se tornar, ele também, um herói:
Impossibilidades não façais,
Que quem quis, sempre pôde; e numerados
Sereis entre os Heróis esclarecidos
E nesta «Ilha de Vénus» recebidos.
Por fim, pode-se dizer que o Amor governa com a sua lei na Ilha dos Amores — por isso, a perfeição ideal da Ilha implica uma crítica aos males que afligem as sociedades humanas: nestas, o amor convive com a desordem, é o mundo rebelde que respira imperfeição. O epifonema de Camões sugere que, neste mundo, a integridade e a justiça foram substituídas pelo interesse pessoal, pela cobiça e pela preguiça. A emblemática Ilha dos Amores simboliza, pois, junto à recompensa das heroicidades, a crítica dos males da sociedade da época.
Referências Bibliográficas
CAMÕES, Luís. Os Lusíadas. São Paulo, Ateliê Editorial, 1999.
MORGANTI, Bianca. A mitologia n’Os Lusíadas: Balanço Histórico-Crítico. 2003. 181p. Dissertação (mestrado) — Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Estudos da Linguagem, Campinas, SP.
Os Lusíadas PDF — Universidade da Amazônia
Fichamento de “Romantismo e Classicismo”
Revisão geral Classicismo — Os Lusíadas (no ava de LPL)
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